Quando falamos em medicina, é comum associarmos essa ideia ao conceito moderno de fazer ciência. E é dessa ideia equivocada que surge a pergunta que abre este artigo: Ayurveda é religião?
Em outras palavras, quando pensamos em medicina moderna, logo vem às nossas mentes uma separação intransponível entre o que é ciência e o que é espiritualidade.
Consideramos cada parte do corpo como se ela atuasse de forma isolada, queremos acabar com os sintomas das doenças sem descobrirmos a causa e sequer consideramos que exista uma contraparte sutil de nós mesmas.
Esse modelo biomédico se desenvolveu nos últimos 200 anos e carrega tantos dogmas quanto qualquer religião. Acredita que somente sua visão de mundo é certa e que qualquer pensamento que não siga o materialismo científico não é verdadeiro.
Mas as civilizações antigas não pensavam dessa maneira. Elas tinham conhecimentos profundos sobre a manifestação do Universo e tudo o que nele existe, até mesmo nós, seres humanos.
Entendiam que nossos corpos são como um reflexo do que ocorre no Universo. E, a partir desse entendimento, sabiam que era impossível dissociar o funcionamento do corpo humano das Leis que o regem.
E quem rege essas Leis? Seguramente não são os seres humanos. Seres humanos apenas teorizam sobre essas Leis, tentam compreendê-las a partir dos seus sentidos limitados e, com bastante frequência, descobrem que estavam errados.
O que é religião, afinal?
Para entendermos se Ayurveda é religião ou não, o primeiro passo é compreender o que é religião de fato.
De acordo com o Dicionário de Filosofia de Stanford, a palavra religião deriva do latim “religio”, que significa conscienciosidade, devoção, obrigação.
Já o dicionário etimológico também aponta para “religare”, que significa religar, atar, voltar a unir. Nesse sentido, religião tem a ver com o desejo de se reconectar com uma divindade potencialmente perdida ou inalcançável.
Se tomarmos essa ideia, podemos ter certeza de que Ayurveda não é religião. Afinal, o objetivo desse conhecimento milenar não é intermediar uma relação entre pessoas e divindade.
Pelo contrário, o Ayurveda considera que todos os seres vivos, inclusive os seres humanos, são manifestações da divindade. E para compreendermos isso, precisamos nos aprofundar um pouco na manifestação do Universo segundo a tradição Ayurveda.
Ayurveda e a origem do Universo
Segundo o Ayurveda, que se baseia em outras filosofias, como samkhya, existe uma energia primordial única. Essa energia primordial se divide em Purusha e Prakrti — masculino e feminino, respectivamente.
Purusha é a consciência primordial, enquanto Prakrti é a matéria primordial. Impulsionada por Purusha, Prakrti se manifesta de diversas formas, até chegar aos panchamahabhutas, que são os cinco elementos que constituem tudo o que existe no Universo.
Até aqui, falamos de como as coisas acontecem no Universo. Mas no corpo humano, funciona da mesma forma.
No corpo dos seres vivos, purusha é a consciência, também chamada de Atma. Prakrti, por sua vez, é a matéria — sutil e grosseira — que compõe os corpos dos seres vivos. E se a matéria no Universo é composta por panchamahabhutas, em nossos corpos é exatamente igual. A diferença é que costumamos agrupar esses elementos em doshas e dhatus.
Resumindo, se nós temos uma energia primordial que dá origem a tudo e que costuma ser representada como uma divindade, e se nós somos um desdobramento dessa energia primordial, então nós somos uma parte dessa divindade.
Essa ideia se contrapõe a algumas religiões, como a cristã, que considera que essa energia primordial, chamada de Deus, é um princípio transcendente, ou seja, está fora de nós e do nosso alcance.
Contudo, para o Ayurveda, assim como a maioria dos povos originários do mundo, esse princípio é imanente, ou seja, permeia toda a Criação.
É por isso que não faz sentido falarmos que Ayurveda é religião, afinal, para essa tradição, não há com o que nos religarmos a não ser nós mesmas, já que somos uma expressão dessa divindade ou princípio.
Ayurveda e religião: quais as diferenças?
Quando observamos qualquer religião, podemos identificar determinado conjunto de crenças, rituais e códigos éticos e morais ligados ao que é sagrado.
Só para citar alguns exemplos, o catolicismo reconhece Jesus Cristo como filho de Deus, o judaismo não. Na Igreja Católica temos rituais como batismo, no islamismo não.
No Ayurveda, embora tenhamos sugestões de regras e condutas a serem praticadas, elas não estão estreitamente conectadas ao que é sagrado ou a qualquer prática religiosa. Elas são apenas orientações que visam a prevenção, tratamento e manutenção da saúde.
É o caso, por exemplo, das condutas diárias, chamadas de dinacharya. Acordar no brahama muhurta (antes do nascer do sol), fazer a higiene individual, praticar atividades físicas e fazer oleação no corpo são indicações que qualquer pessoa, de qualquer religião pode fazer.
Você também não precisa se converter a nenhuma religião praticada na Índia, como hinduismo, budismo, shaivismo ou shaktismo para inserir o Ayurveda na sua vida. Tampouco precisa acreditar em Shiva, Shakti ou qualquer outra “divindade” associada a essa cultura.
Mas cabe ressaltar que o Ayurveda sugere que você tenha práticas espirituais (quaisquer que elas sejam), pois a espiritualidade é um dos pilares de uma vida saudável.
Charaka samhita: entre ciência e misticismo
Embora muitas pessoas insistam em afirmar que não existe misticismo no Ayurveda, basta folhearmos o Charaka Samhita, o livro mais importante do Ayurveda a que temos acesso hoje, para que essa teoria caia por terra.
O texto milenar discorre sobre a origem de Atma (que alguns traduzem como Alma) e a formação da matéria a partir de elementos sutis, chamados panchamahabhutas.
Define Prakrti como a Natureza Primordial, aquela que permite a manifestação material, e que é a contraparte Purusha, uma referência direta ao princípio de dualidade que tanto estudamos nas tradições místicas.
Também faz afirmações que são amplamente conhecidas em tradições esotéricas, como o reflexo do macrocosmo (Universo) no microcosmo (corpo humano) e vice-versa, ressaltando que a observação de um pode orientar o entendimento do outro.
Em outras palavras, ao observar o macrocosmo, podemos desvendar o corpo humano, suas funções, atividades, necessidades e a sua própria evolução.
O livro que é aclamado por apresentar a base da ciência ayurvédica também nos fala sobre a transmigração de Atman (Alma), um conceito apresentado e defendido também por Pitágoras, assim como diversos povos nativos das Américas.
E o que isso nos diz sobre Ayurveda ser ou não ser uma religião? Ayurveda não é religião, mas suas bases são místico-filosóficas. E para compreendermos esse conhecimento em sua profundidade, precisamos dessas bases.
Moksha: o objetivo do Ayurveda
Logo no início do Ashtanga Hrdayam, um dos livros mais importantes e difundidos do Ayurveda, descobrimos que o objetivo deste conhecimento é dharma, artha, kama e moksha.
Dharma é a retidão de propósito, a conduta correta ao longo da vida. Artha é a riqueza, a abundância, a prosperidade.
Kama, por sua vez, é o prazer e a felicidade, o desfrute da vida. E moksha, a libertação de todos os apegos da vida mundana, algo que pode ser conquistado em vida, ao contrário do que muitas pessoas pensam.
Logo, o objetivo final do Ayurveda não é ter um corpo sarado, não é perder 10 quilos em um detox, não é tomar shots de cúrcuma e limão pela manhã como parte de um life style.
O objetivo final do Ayurveda é compreender que o corpo (sharira) se vai. E deixá-lo ir sem sofrimento, sem culpa, sem vergonha, respeitando seus processos e compreendendo que Purusha e Prakrti, consciência e matéria, evoluem juntos.
E, embora isso não seja uma religião, porque religiões são carregadas de dogmas, é sim um caminho espiritual. Um caminho que te conduz a uma vida mais longa, próspera e saudável para que você leve deste mundo todos os aprendizados possíveis para a sua próxima vida.
Espero ter te ajudado a compreender melhor que Ayurveda e religião são coisas distintas e que esse conhecimento milenar pode ser aplicado por qualquer pessoa, independentemente das suas crenças e práticas espirituais.
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Um abraço e a gente se vê no próximo artigo!
Eve.

